Investigação identificou padrão massivo de processos, captação irregular de clientes e produção de provas falsas
O Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS) ajuizou ação civil pública contra nove advogados de Minas Gerais e um escritório de advocacia, sediado no município de Belo Horizonte, após concluir que o grupo estruturou e executou práticas de litigância abusiva e fraude processual em milhares de ações trabalhistas distribuídas em todo o país contra gigantes do setor varejista. A ação decorre de investigação que tramitou em um inquérito civil, e reúne farto conjunto probatório evidenciando a atuação irregular dos réus.
O MPT-MS pede a condenação dos advogados ao pagamento de danos morais coletivos no valor mínimo de R$15,2 milhões, além de uma série de obrigações de fazer e não fazer. A ação civil pública foi distribuída e tramita na 2ª Vara do Trabalho de Campo Grande.
Na ação, o MPT-MS pede que o grupo abstenha-se de captar clientes por meio de promessas de resultados incompatíveis com a realidade de cada caso; de ajuizar ações trabalhistas utilizando petições iniciais padronizadas, sem individualizar os fatos específicos de cada trabalhador; de atribuir valores manifestamente excessivos ou desproporcionais às ações; de ingressar com processos sem o mínimo de elementos probatórios que justifique as pretensões; e de empregar marketing digital agressivo para captar clientes de forma indiscriminada, prometendo resultados sem análise prévia da viabilidade das demandas.
O MPT-MS também pleiteia que os profissionais se abstenham de orientar, coagir ou oferecer vantagens a testemunhas para que prestem depoimentos falsos; de apresentar documentos com assinaturas inseridas posteriormente ou de forma irregular, como procurações e declarações de hipossuficiência; e de utilizar qualquer artifício fraudulento na condução dos processos judiciais.
Os pedidos foram apresentados com base nas conclusões de um inquérito civil, reunindo elementos extraídos de processos que tramitam em diversos estados, e apontaram para “condutas reiteradas e sistemáticas que ultrapassam simples padronização de peças”, conforme descreve o procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, comprometendo a credibilidade do sistema de justiça e prejudicando o andamento de demandas trabalhistas legítimas.
Varejistas
A investigação foi iniciada a partir de autos judiciais encaminhados pela 7ª Vara do Trabalho de Campo Grande, narrando a multiplicidade de ações, com pedidos semelhantes, patrocinadas pelos advogados, indicando possível litigância abusiva envolvendo empresas como VIA S/A (Grupo Casas Bahia), Magazine Luiza, Ri-Happy, Lojas Renner, Eletrosom, e outras redes varejistas.
Pesquisa realizada pelo MPT-MS e juntada aos autos demonstram a existência de 29.090 ações patrocinadas pelo escritório, das quais 21.354, quase 75% delas, ajuizadas em face da VIA S/A. Em Mato Grosso do Sul, 878 das 1.224 ações patrocinadas pelos réus tinham o grupo como parte. Até setembro de 2024, a VIA S/A elencou 139 processos nos quais os respectivos autores foram condenados em litigância de má-fé, cujos pedidos somam R$ 76,2 milhões.
Aparecem também no rol de demandados o grupo Magazine Luiza, com 1.686 ações dentre as 3.534 impetradas no país, e a RN Comércio Varejista, com 165 ações locais, de um total de 665.
Contatos por WhatsApp
Uma das primeiras decisões que despertaram atenção foi uma sentença do juiz Marcelo Alexandrino da Costa Santos, da 3ª Vara do Trabalho de Nova Iguaçu (RJ), identificando que clientes do escritório de advocacia mantinham contato com seus representantes legais apenas por aplicativos de mensagens, e assinavam documentos eletronicamente, sem conhecimento do teor.
A decisão constatou a repetição de assinaturas em diferentes documentos, ausência de informações individualizadas prestadas pelos reclamantes e reprodução quase integral dos mesmos relatos em ações ajuizadas contra empresas diversas, independentemente da localidade ou tipo de estabelecimento. O magistrado registrou, ainda, que o advogado titular do escritório patrocinador das causas é egresso do quadro de profissionais da própria empresa demandada, encontrando-se “em posição privilegiada para traçar estratégias exploratórias da vulnerabilidade da empresa”.
Depoimentos
A partir da coleta de decisões e sentenças de magistrados de vários tribunais regionais do Trabalho, as evidências se acumularam. Em depoimento colhido pelo MPT-MS, um ex-empregado da empresa VIA S/A, em Campo Grande, relatou ter recebido a promessa de pagamento entre R$ 300 mil e R$ 400 mil.
Inicialmente, ele processou a empresa pleiteando o pagamento de horas extras, com apoio de um advogado da capital. O trabalhador, então, passou a ser alvo de insistentes contatos de um escritório de Belo Horizonte e, por isso, afirmou ter autorizado o ajuizamento de nova ação, relacionada ao pagamento de comissões pelas vendas. Neste caso, ele suspeita que sequer houve análise do seu histórico laboral ou orientações quanto a eventual sucumbência.
O avanço das investigações revelou que a atuação dos réus não se limitava à padronização de petições. Provas extraídas de processos, mostraram roteiros enviados a testemunhas com orientações detalhadas sobre o que deveriam dizer durante audiências, além da promessa de vantagens financeiras em caso de êxito. Em decisões da Justiça do Trabalho, identificou-se ainda uso de procurações com assinaturas divergentes daquelas constantes dos documentos pessoais dos autores.
No decorrer das investigações, o MPT-MS ofereceu duas oportunidades para celebração de Termo de Ajuste de Conduta (TAC), visando comprometer os investigados a cessarem as irregularidades, reparar danos coletivos e adotar medidas para impedir novas ocorrências. Contudo, o titular do escritório recusou a proposta de forma categórica, afirmando que ele e sua equipe “nunca praticaram qualquer ato de advocacia ou litigância predatória”.
Diante da recusa dos investigados em uma composição extrajudicial, e perante a constatação do MPT-MS de que as condutas seguem produzindo graves prejuízos à administração da Justiça e aos próprios trabalhadores que representam, foi ajuizada a ação civil pública, requerendo a tutela inibitória e a reparação por danos morais coletivos.
Para a fixação do valor da indenização por dano moral coletivo, foram considerados a gravidade da conduta (prática sistemática e em larga escala), a condição econômica dos ofensores (escritório com quase 30 mil processos), a extensão dos danos (âmbito nacional), o caráter pedagógico da sanção e a prevenção de novas condutas.